sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Comunidade no Umbral – Entrando na Comunidade – Parte II

Enquanto descíamos uma ladeira, reparei que o chão rapidamente ficou molhado, coberto por uma fina película de barro viscoso, que parecia grudar nos calçados. Percebi também o cheiro terrível do ambiente, uma mistura de carniça e fumaça. Logo vi um enorme portão de ferro que recortava a muralha. Seu aspecto se assemelha ao dos presídios. Tinha ferrugem e estava com muitos desgastes, riscos e alguns amaçados como se alguém houvesse batido.
Chegando à frente do portão, Rita bateu numa pequena janelinha de ferro. Um homem, ao abrir a janelinha, reconheceu a irmã Rita e abriu o portão para entrarmos. Reparei que o homem que cuida do portão vestia um colete branco, semelhante aos coletes balísticos usados pelas polícias, o que para mim causou estranheza.
-Interessante. Como pode uma entidade desencarnada utilizar colete a prova de bala no plano espiritual?
Bartolomeu explicou que essa é uma situação simbólica para aquelas entidades que moram na comunidade.
-Charles, para esses irmãos sofredores, imantados ainda aos pensamentos de ataques e vinganças, o fato de ter alguém com colete na entrada da comunidade simboliza a força policial ou a garantia de segurança. Para se diferenciar dos demais vigias escolhidos entre os da própria comunidade, esse que fica no portão, por ser mais esclarecido, exercer uma atividade orientada pelos irmãos de luz, por isso seu colete é branco. Esse irmão, devido as condições desse ambiente, passa por rotinas de atividade, igual às escalas de turnos, sendo substituído periodicamente para restabelecer seu estado psicológico. De outra parte, por estarmos no Umbral, muitas legiões se formam la fora, nas regiões mais abaixo, e formam turbas ensandecidas com o propósito de invadirem e fustigarem os irmãos aqui dentro. Não raro, essas legiões se dão ao trabalho de bater e gritar no muro e no portão, forçando entrar na comunidade. Em algumas situações é necessária a manifestação de entidades superioras para afastar essas legiões, visto que o dano psicológico e emocional que elas causam para os internos é muito grande. Quando há essa necessidade dos irmãos superiores intercederem, quem os chama é o vigia do portão através de um aparelho de comunicação.
A luminosidade do ambiente era como se uma fraca lâmpada rompesse a escuridão. Do portão de acesso até o início das casas a descida naquele terreno desértico e enlameado era mais íngreme. No ponto mais baixo dessa decida tinha um pequeno córrego de uma lama com viscosidade marrom escuro e roxa que ficava empoçada antes de continuar escorrendo. Ao longo da extensão desse valo era possível ver que o mesmo desembocava a uns duzentos metros num grande açude que represava essa lama viscosa. O cheiro de carniça e fumo, misturado a um aroma de conhaque, era mais acentuado junto ao valo.
Bartolomeu percebeu minha estranheza com relação aquele líquido viscoso.
-Charles, isso no valo corresponde aos fluidos animais dos sangues das pobres criaturas, vítimas dos rituais de sacrifício, magnetizados e canalizados para cá pelos Exús. Esse fluido vem impregnado da fumaça deletéria das velas, pólvoras, fumos e das bebidas alcoólicas consumidas nas atividades dos centros de terreiros. Esse fluido é usado pelos irmãos daqui como alimento para aplacar a ilusória situação de fome que sentem como se ainda estivessem no corpo físico. Junto desse fluido, em sua maioria de origem dos animais utilizados em rituais de sacrifício, também há o fluido de organismos humanos, provenientes das vítimas suas, assassinadas de forma cooperativa com os encarnados. Quanto maior a quantidade desse fluido canalizado para cá, maior será o status do líder diante da sua comunidade. Se algum deles conseguir aprisionar uma vítima de assassinato, maior respeito terá entre os seus. Já o infeliz que se tornar vítima de assassinato desses irmãozinhos, não raro está tão imantado as vibrações do Umbral, passando à condição de vampirizado pelo grupo ao ponto de ter os sentidos e a razão adormecidas.
Passando essa parte empoçada do valo, por sobre algumas pedras que facilitavam o caminho, iniciava a elevação do terreno de forma até bem acentuada. Nessa elevação iniciavam as casas como uma favela. Todas elas eram inacabadas e estavam aglutinadas. Elas estavam construídas cravadas nesse morro. Tinham estreitas escadas entre elas que conduziam para chapas superiores. Não havia janela e nem porta, apenas as aberturas.
Acima das lages, em alguns casebres mais elevados, existiam muretas que imitavam guaritas. Ali havia homens vestidos de preto, segurando algo semelhante a um fuzil. Percebi que esses eram os vigilantes escolhidos pela própria comunidade, conforme a explicação de Bartolomeu.
Quando passamos pelo valo, diversos adolescentes correram em nossa direção. Descalços e maltrapilhos, alguns só de bermuda, e completamente imundos, vieram demonstrando imensa alegria pela chegada da irmã Rita, exclamando: “Profe. Rita!”. Cercaram-na, segurando em seus braços e roupas ou apenas tocando em seu ombro. A irmã Rita sorria com grande entusiasmo, enquanto cumprimentava cada um deles. E caminhando aglutinada com essas crianças, Rita subiu por uma viela até chegar numa escada que dava acesso a parte superior de um casebre.
Toda essa movimentação foi acompanhada pelo olhar atento de um vigilante posicionado numa lage localizada entre os primeiros casebres na base do morro e o casebre para onde Rita se dirigiu com as crianças. A fisionomia do vigilante era sisuda e ameaçadora. Bartolomeu solicitou que eu não fixasse o olhar nele.
Acompanhando Rita, subi também com ela e aquelas crianças para a parte superior de um casebre. A lage era composta de três paredes apenas. A parte onde se chegava pela escada era como que inacabada, sem nenhum parapeito ou corrimão. Dali se tinha uma visão panorâmica dos casebres mais abaixo, da valeta com aquele líquido viscoso, do muro e do portão. Percebi que o valo nada mais era que a base de um desfiladeiro. Vi que aquela valeta descia do meio da escuridão, de uma área localizada ao alto a minha esquerda, quase junto ao muro, construído na parte mais alta do desfiladeiro e acompanhando a geografia íngreme do terreno até a área mais plana, onde estava o portão de acesso à comunidade.
Do lado de cá do desfiladeiro, onde estavam construídos os casebres, era possível ver que sua geografia, além de estar mergulhada naquela escuridão, era pouco menos vertical. Essa verticalização da geografia do terreno diminuía na media que se aproximava da área onde os casebres eram construídos.
Na minha frente, da lage onde estava, observei aquele valo que tinha seu líquido empoçado na viela que serve de caminho do portão aos casebres. Escorrendo ao longo de uma geografia que se planificava à minha direita, o valo serpenteava uma estreita área onde parecia ter uma espécie de vegetação semelhante a um capim alto todo ressecado, parecendo serem compridos espinhos. Logo após essa vegetação tinham algumas estacas de madeira apodrecida, estabelecendo uma cerca com o que parecia ser apenas um fio de arame farpado que não estava esticado, todo sujo com algo que parecia musgo seco. Essa cerca divisava com o açude, onde estava represada aquela pasta viscosa que tinha sua nascente lá no outro estremo, na escuridão.

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