quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Comunidade no Umbral – O Resgate – Parte III

No interior da laje, onde Rita e as crianças estavam, a escuridão se fazia acentuar por causa da cobertura construída sobre as três paredes. A sensação era de estar diante de uma gruta. Uma mulher que já estava ali, aproximou-se de mim, com os livros que Rita trouxera, e ficou por um tempo olhando-me. Depois retornou para junto de Rita e das crianças. Não existia nenhum móvel ali dentro. E as crianças, de pé, disputavam a atenção de Rita. Tive a impressão de que eles se sentiam órfãos e abandonados, sendo que Rita representava a figura de mãe, muito mais que de professora.
Entre as muitas falas e empurrões que as crianças proporcionavam ao disputar a atenção de Rita, que juntamente com a outra mulher, sempre acalmavam a situação, estavam histórias do que elas fizeram ali na comunidade ou das saídas para a superfície junto com determinados “Exús”.
Depois de um tempo o ambiente começou a ficar mais calmo. Foi quando Rita passou a ter diálogos mais direcionados com as crianças. Sempre sorridente, Rita dirigiu o diálogo para uma criança que aparentava uns treze anos.
-E você Ramed? O que tem feito?
A criança tinha uma maneira diferente das demais. Suas vestes, apesar de esfarrapadas, destacavam que ela era do Oriente Médio.
-Profe. Rita. Queria ir pra casa. Já cumpri muitas ordens aqui e não mereço mais ficar preso.
Enquanto Ramed expunha sua vivência para Rita, Bartolomeu comentou sobre ela.
-Charles, essa criança que fala foi treinada para a guerra, numa região do Oriente Médio. Ela acredita que não desencarnou, mas que está presa num acampamento da Cruz Vermelha, administrado por uma nação ocidental. Ela teve seu desencarne num violento combate, onde viu colegas tombarem pelo fogo inimigo. Quando o trágico lhe ocorreu, não notou seu corpo no chão. Correndo em retirada da área de combate, equipes de resgate se posicionaram em seu caminho para oferecer-lhe água e tratar suas feridas. Depois a trouxeram para cá. Essa equipe lhe explicou que, como estava sob cuidados médicos, ela não poderia retornar mais para o combate. Depois de muito trabalho de orientação, Ramed diminuiu muito o ódio e o desejo de vingança. Repare que entre os irmãozinhos presentes, é a que está em melhor estado.
De fato, Ramed tinha o rosto, as mãos e o cabelo, mais limpo quando comparado com as demais crianças.
Quando Ramed terminou de falar, Rita, com um largo suspiro de quem não mais vai ver uma pessoa querida, o encheu de esperança.
-Meu pequeno Ramed, hoje, antes de vir para cá, estive conversando com o nosso dirigente e ele me contou que amanhã, bem sedo, uma pessoa muito sua querida vem lhe buscar. Você está recebendo alta e irá morar numa casa. Aproveita hoje para se despedir dos amigos que fez aqui.
Ramed não conteve a alegria e logo se achegou em Rita, abraçando-a pela cintura e chorando convulsivamente.
Rita, abraçando-o, sorria com muita alegria. Acariciava a cabeça e enxugava as lágrimas daquela criança com suas mãos, de forma a acalmá-la como se fosse a mãe dele.
-Ramed! Ramed! Mas esse é um momento de muita alegria. Não é para chorar. Amanhã eu não estarei aqui quando vierem lhe buscar. Fica tranquilo que para a casa que você vai, eu também dou aula para as crianças. Nós vamos continuar nos vendo, tá?!
Ramed não conseguia falar. Enquanto isso, algumas crianças que tentaram zombar da situação foram acalmadas pela outra mulher.
Diante da cena que misturou comoção por parte de Ramed e uma breve zombaria pela parte de algumas crianças, curiosidades me surgiram.
-Bartolomeu, o que está acontecendo com Ramed? E outra: por que a Rita não está acompanhada de seu mentor?
-Charles, a irmã Rita está sim acompanhada por seu mentor. Assim como eu, ele está com a mão sobre a cabeça da irmã Rita, magnetizando seu perispírito para não sofrer os efeitos deletérios desse ambiente trevoso. Lembre o que disse da condição de invisibilidade assumida por mim. Pois bem, o mentor de Rita aguardava-nos junto ao portão, na entrada da comunidade. Ele está nesse momento bem próximo da irmã Rita, para auxiliar na orientação e no encaminhamento desses irmãozinhos. Nossa condição de invisibilidade decorre da necessidade de não constranger nossos irmãos imantados ao Umbral, pois muitos não têm o discernimento da condição em que se encontram e veriam nós com escárnio e mesmo como assombração. Isso afetaria o emocional e o psicológico desses irmãos. Já o Ramed está recebendo as graças da providência Divina. Depois de quase trinta anos coabitando esse ambiente, ele já se desfez do ódio e do princípio de vingança que o imantavam a essas zonas trevosas. Nos últimos meses, Ramed pensou muito na sua mãe e rezou muito para que Deus permitisse um reencontro com ela. Ele crê que amanhã sua mãe virá buscá-lo e levá-lo para casa. Na verdade, quem virá amanhã é o enfermeiro que lhe resgatou e com quem Ramed fez grande amizade. Ele será conduzido até um hospital do plano superior, onde receberá o tratamento necessário para o seu restabelecimento. Depois irá para uma escola onde aprenderá sobre a cultura do povo brasileiro. E tudo transcorrendo dentro do previsto, Ramed estará reencarnando no seio de uma família, da região sul de Porto Alegre, em três anos aproximadamente. Veja Charles como a providência Divina opera. Ramed, quando encarnado, foi instruído no manejo de armas, da guerra e do ódio a determinado povo e etnia. Apesar dessa instrução equivocada e doentia, Ramed sonhava em ser um jogador de futebol. Daqui a pouco, essa criança estará sendo recebida nos braços de uma família que lhe propiciará o esporte que tanto desejou em outro continente, família que lhe ensinará a respeitar e conviver com as diferenças, sejam elas quais forem.
Nesse momento a irmã Rita começou a se despedir das crianças. Logo elas se dispersaram, descendo a escada e desaparecendo entre os casebres. Ficou por último o Ramed, que continuava abraçado na cintura de Rita. Sem mais outra criança naquele ambiente, Rita se ajoelhou para ficar na altura de Ramed. Segurando com ternura o rosto daquela criança, Rita deu um beijo em sua testa e a acalmou mais uma vez.
-Meu querido Ramed, que Deus te acompanhe hoje, amanhã e sempre. Na próxima semana eu vou te visitar na sua nova escola. Agora vai e aproveita essas últimas horas que tens aqui para brincar e se despedir de seus amigos.
Ramed abraçou fortemente Rita e disse que aguardaria sua visita. Depois saiu correndo exaltando uma alegria que contrastava com a tristeza do ambiente.
Rita se despediu daquela mulher que garantiu em distribuir para as crianças os livros trazidos. Então me chamou para irmos embora. Enquanto descia a viela, e antes de chegarmos ao valo, ela comentou sobre seu trabalho.
-Sabe Charles, esse trabalho é gratificante, mas cansativo. O desgaste emocional é muito forte e esses irmãos parecem sugar minhas energias. Apesar de sairmos mais leve pelo trabalho desenvolvido, a impressão é de que estamos sempre vestindo roupas sujas que grudam na pele. Por isso, eu e as outras irmãs encarnadas que nos revezamos nessa atividade, optamos pelo esquecimento dessa realidade, de forma que nossos mentores intercedem em nossos pensamentos para, quando retornarmos ao corpo, quando acordar, não tenha lembrança nenhuma do ocorrido aqui.
Quando estávamos subindo em direção ao portão, no exato momento que o vigia o abriu, eu imediatamente retornei para o corpo. O relógio marcava 5h e 48min. Levantei da cama com uma sensação de desconforto e relembrando aqueles momentos no Umbral.

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