A entrada que se faz no
mundo espiritual, em especial no momento do desencarne, e que
comumente se diz “morte” entre os encarnados, é de conjecturas e
de confusão. Caso estejamos envolvidos com ideias e atividades ainda
mal resolvidas ou mesmo por fazer e que digam respeitos aos desejos
pessoais, a entrada na espiritualidade será envolta de perturbações
e constrangimentos que facilitarão a aproximação de irmãos
obsessores que cobrarão pelas realizações deveras egoísticas que
não ficaram “acabadas” ou que ainda necessitavam de desfechos.
Minha entrada na
espiritualidade não foi das melhores; devo confessar. Para mim esse
momento serve tanto para minha “terapia” (se assim me permitem
classificar) como para conjecturar com os leitores as condições e
influências dos pensamentos que elaboramos a cada momento de nossas
existências.
É difícil compreender
a separação quando ainda notamos familiares e amigos a nossa volta:
nos chamando, nos elogiando e mesmo produzindo pensamentos sobre a
dignidade, honrabilidade, valores que professávamos e erros que
produzimos. A sensação de percebermos os pensamentos dos
interlocutores presentes ao nosso entorno (seja durante o momento da
separação, ou durante os preparativos do velório, durante esse e
mesmo nos dias que se seguem após ao enterro) é muito intenso e
produz no íntimo como se fossem vozes ecoando; é como se estivesse
numa sala vazia onde o som da voz humana produz um eco que faz
aumentar o som produzido pelo interlocutor e vibrar o corpo do
ouvinte. A sensação é angustiante.
Sem sombra de dúvidas
eu não fui das melhores pessoas quando encarnado. Tive diversos
contratempos sobre a religiosidade e meu entendimento estava
relacionado aos valores que cultivara ao longo da formação de minha
carreira profissional. O orgulho de ser bem-sucedido na carreira me
fizera desenvolver uma compreensão personalista da religiosidade;
todavia, sem desrespeitar as formas que outros professavam as suas
próprias concepções religiosas.
Mas o sentimento de
penetrar o mundo espiritual, sem grandes entendimentos e com
preocupações das atividades ainda por finalizar, condicionaram
situações conflituosas que promoveram uma profunda tristeza em meu
ser. Arrastando-me para meu próprio egoísmo, encontrei-me diante
das angustias e dilemas, preocupações e injúrias, desafios e
cóleras, que cultivara quando encarnado. Os problemas que ascenderam
em meu íntimo nada mais eram o resultado de um “peso morto” que
produzia um cansaço injustificável e um peso nos olhos que me
forçavam quase que adormecer seguidamente.
Os dias seguiram-se a
noites perturbadoras. Tudo se confundia e percebia viver um pesadelo
acordado. Em diversos momentos me sentia como dopado sem saber de
onde aquele sentimento e sensações provinham. Era tudo uma
perturbação constrangedora do meu próprio eu. Com o tempo notei
que algumas ideias, ao pensar nelas, ao visualizar as pessoas e suas
falas, causavam-me diversas lugubressencias na maneira de pensar e de
imediato parecia que estava caindo como vítima de vertigens
intensas, provocadoras de enjoos e vômitos nauseantes.
Os meses se seguiram e
nada me fazia me desprender da vontade de voltar para minha casa e
para o trabalho. Lembrava da casa e dos familiares e desejava falar
sobre tarefas a serem realizadas. Lembrava do trabalho e das ordens
que deveriam ser cumpridas pelos subordinados, em especial sobre os
“sermões” designados para aqueles que desafiavam minha
autoridade.
Quisera um momento de
paz, mas na mesma medida da paz eu fazia cobranças sobre atividades
e pessoas. Aos que me caçoaram sobre minha “morte”, o desejo era
de parar na frende deles e cobrar explicações.
Toda uma confusão me
preenchia o ser logo nos primeiros momentos de retorno para a
espiritualidade. E isso eu sempre afirmava, sempre em tom de ironia e
superioridade aos que desejavam me ensinar alguma coisa sobre a
morte: Quando eu chegar lá, se for dessa forma, farei isso ou
aquilo... saberei me virar.
Ilusão! A arrogância,
a prepotência, a certeza de saber como se portar diante das
dificuldades... tudo era resultado de uma ilusão que cultivara como
a mais sólida verdade.
As confusões
sentimentais que atormentavam meus pensamentos só fizeram aumentar a
dor e em diversas situações procurei ervas e folhas, seja nas matas
por onde andei ou nas esgueiras pantanosas por onde cai, que pudessem
ser utilizadas para aplacar o sofrimento.
A vida naquelas regiões
é pujante (se assim posso exprimir). A quantidade de pessoas com as
quais me deparei. Os valores confusos que diversas outras tentavam me
convencer e explicar sobre o que ali ocorria. Tudo era perturbador.
As constantes epifanias que eu ou os que conviveram comigo naquelas
regiões, pareciam saídas de mentes doentias. Eramos como crianças
a explicar com arrogância sobre o desconhecido.
Em diversas vezes
cruzamos por caminhos onde era possível enxergar ao longe a cidade
onde antes morava: onde estava a família e o trabalho. Mas ao mirar
o caminho e seguir na direção desejada só fazia piorar a situação
e a esperança do retorno. Encontrávamos precipícios
intransponíveis e a tentativa de contorná-los condicionava em nos
perdermos por valas, desertos, pântanos, encobertos ora por neblinas
espeças ou por noites assustadoras. As pessoas que encontrávamos
nesses caminhos eram todas de lamentar o drama. Queriam água,
comida, roupas e expressavam raiva por não sabermos explicar o que
lhes acontecia. Em diversas situações nos engalfinhamos como
pugilistas enfurecidos e livres de regras. Adversários que muitas
vezes se mostraram mais forte que eu e necessitado da ajuda dos que
me acompanhavam na caminhada sem rumo.
As tenebrosas regiões
se faziam mais intensas na medida em que acreditávamos estarmos
próximos das cidades. Ocorriam momentos que um de nós dizia ter
ouvido o som das turbinas de aviões e esse indicava o caminho para
onde poderíamos chegar no aeroporto. Mas toda a caminhada se fazia
de arrazoado sentimento de angústia e ingrata satisfação de
chegarmos a lugar algum que não fosse pântano, lama ou grutas de
onde era possível ouvir gritos, gemidos e o som forte do vento
quente.
Caros leitores! Minha
confissão é apenas um detalhe dos dramas vivenciados por essa alma
que reconheceu no sofrimento a escola da aprendizagem. Tudo e todos
estavam como professores e alunos, num mundo que se confunde, se
interpenetram e estabelecem conexões amiúde sutis. Compreendi, a
duras penas, sobre a necessidade de mudar o rumo dos pensamentos.
Compreendi que a ilusão pode ser tão real quanto a verdade mais
concreta. A destreza intelectual encontrou seus limites na exata
medida da arrogância orgulhosa do profissional de êxito.
Foi uma velhinha, que
não sei quantas vezes cruzamos por ela durante as milhares de
caminhadas sem rumo, quem me fez parar um dia para rezar. Pois é!
Sempre encontramos essa velhinha em alguma parte dos nossos caminhos
na busca da cidade. Ela aparecia ao longe, em algum lugar, sentada ou
de pé, com um terço na mão. Para mim era mais uma daquelas beatas
que pediam para rezarmos juntos para Deus. Até em algumas situações
nós paramos para rezar com ela, mas sempre com o desejo de atender a
ela e logo nos livrarmos da pedinte e seguirmos nossos caminhos. Mas
ela insistentemente e perturbadoramente aparecia em nossas trilhas;
era como se conseguisse nos adiantar por atalhos. Por outras, nós
percebíamos que andávamos em círculo e por isso deparávamos com
ela.
Mas eis que essa
velhinha, vestida simplesmente e de terço na mão, passou a provocar
sentimentos que estavam adormecidos em mim. Numa tardinha enevoada
ela me fez recordar da minha infância, daquela infância quando
acreditava no Papai Noel; fez, por instantes, despertar os
sentimentos e emoções da ilusão que carregamos sobre o Natal.
Nesses momentos o sentimento se fazia envolvo de constantes lembras
de situações alegres e esperançosas. Lembrava dos rostos alegres e
do sentimento dos tios ao entregar o presente que eu tanto aguardara.
A lembrança do abraço e daqueles sorrisos me envolvia numa saudade
que marejavam meus olhos. Essas lembranças eram suficiente para
deixar, durante aqueles momentos junto dessa velhinha, as cobranças
aos subordinados e a ira que ainda cultivava dos desafetos.
Ai houve um tempo que
resolvi ficar mais tempo com a velhinha, participando do seu mundo de
orações e lembranças. Senti que isso passou a diminuir minhas
dores e o sentimento de buscar a cidade e retornar para casa foi se
dissipando em meu ser.
Não demorou muito para
essa velhinha me convidar para irmos até uma igreja que ela conhecia
em uma vila não muito longe. Disse que lá eu poderia tomar banho e
participar do grupo de orações dela. Fato é que meu sentimento
estava modificado e sentia já plena confiança naquela velhinha.
Decidi, então, ir com ela, carregando um desejo ardente de rezar
para Jesus Cristo.
Hoje sei tudo o que
aconteceu; tenho melhor clareza dos fatos e situações e o quanto o
pensamento pode nos encaminhar. Desde que resolvi acompanhar a
velhinha até ao dia de hoje, quando escrevo essa história, se
passaram exatos cinco anos, três meses e dezesseis horas. E do meu
desencarne até o momento quando acompanhei a velhinha foram vinte e
oito anos, sete meses e duas horas.
Ao leitor amigo, que ao
chegar aqui se surpreende com minha confissão e se pergunta sobre a
velhinha: Quem é, ou, quem era a velhinha? Posso afirmar com plena
convicção que ela é uma de muitas e muitos que estão a nossa
volta, orando por nós. Ela sempre foi meu “Anjo Protetor”, que
sempre me acompanhou. Ela é, assim como aqueles que lhe acompanham,
um espírito familiar e amigo que lhe quer bem. E se em algum momento
você se sentir com mal-estar, com alguma angústia, procure se
recolher e pede para seu “Anjo da Guarda”, que lê contigo essa
história, para fazerem juntos uma oração.
Saibam, a velhinha foi
minha bisavó Carmelinda. Só depois de um tempo na vila e já
alojado em sua residência é que lembrei do rosto dela nas
fotografias que minha mãe mostrou em certo Natal.
Fiquem em Paz,
J.C. de S.X.
Psicografado em 27 de
janeiro de 2014.